17 . 05 . 2019
O Défice de Sono e a Doença de Alzheimer
O papel restaurador do sono tem sido foco de grande atenção científica nos últimos anos. Um sono deficiente, em quantidade e qualidade, aumenta o risco de doenças cardiovasculares, cancro e demência. Este artigo incidirá sobre a influência da privação de sono no desenvolvimento de demência, especificamente a doença de Alzheimer.
A demência é um problema crescente na população cada vez mais envelhecida dos países industrializados, sendo a doença de Alzheimer responsável por cerca de 60-80% dos casos. Esta é uma importante causa de mortalidade e morbilidade, afectando a qualidade de vida dos pacientes e seus familiares.
O que é a doença de Alzheimer?
A doença de Alzheimer é uma patologia neurodegenerativa que conduz a uma deterioração gradual da memória, inicialmente, e funções executivas numa fase posterior. O diagnóstico é mais comum após os 65 anos e os pacientes vivem, em média, 8 anos após o diagnóstico.
Qual é o mecanismo de lesão neuronal na doença de Alzheimer?
A doença de Alzheimer é, hoje em dia, reconhecida como uma entidade multifactorial em que diferentes mecanismos contribuem para a disfunção e morte precoce dos neurónios. Do ponto de vista histopatológico, as lesões típicas desta doença são as placas amilóides e os emaranhados neurofibrilhares.
As placas amilóides são agregados de proteína β-amilóide que é um produto do metabolismo neuronal. A função exacta da proteína amilóide no cérebro ainda é debatida, havendo alguma evidência de que poderá ter actividade antimicrobiana e a sua produção estar aumentada em casos de inflamação.
Os emaranhados neurofibrilhares são compostos por proteína tau hiperfosforilada. A proteína tau tem uma função estabilizadora dos microtúbulos neuronais e é fundamental para o seu correcto funcionamento. No entanto, quando hiperfosforilada por reacções enzimáticas, agrega-se em estruturas filamentosas que constituem os emaranhados neurofibrilhares, e interferem com o funcionamento dos neurónios.
Fig. 1 – Com o recurso a PET scans é possível visualizar a deposição de placas de β-amilóide e proteína tau no cérebro dos doentes com Alzheimer.
Qual a importância do sono no desenvolvimento da doença de Alzheimer?
Está documentado o efeito da privação de sono (menos de 7 horas de sono por noite) nos achados histológicos associados à doença de Alzheimer. Alguns dos mecanismos descritos são os seguintes:
- a privação de sono, especialmente na sua fase mais profunda (estadios 3 e 4 do sono não REM), conduz ao aumento de deposição de proteína β-amilóide no cérebro, particularmente no hipocampo – zona do cérebro responsável pela consolidação de memórias, entre outras funções. Alguns estudos demonstraram que este efeito pode ser sentido após uma única noite de sono deficiente.
- a actividade de enzimas envolvidas na fosforilação da proteína tau também é induzida pela carência de sono, promovendo a formação de emaranhados neurofibrilhares. Indivíduos que reportam dormir menos horas, tendem a ter maior deposição de proteína tau hiperfosforilada.
- aumento das espécies reactivas de oxigénio (os chamados radicais livres). Estes são produtos do metabolismo celular que têm a capacidade de oxidar certas estruturas celulares, comprometendo o seu funcionamento. A privação de sono diminui a capacidade antioxidante no cérebro.
O que é o sistema glinfático?
Existe um sistema de circulação de líquido cefalo-raquidiano no cérebro que é particularmente activo durante o sono, especialmente nas suas fases mais profundas. Este sistema assegura a nutrição dos neurónios e a limpeza dos produtos do seu metabolismo celular. Está demostrado, em animais, que a privação de sono interfere com o funcionamento do sistema glinfático. Esta interferência pode explicar, também, a maior acumulação de β-amilóide quando há privação de sono.
Fig. 2 – Representação do circuito de líquido cefalo-raquidiano no cérebro.
Quem deve estar particularmente atento a esta associação?
O sono tem tantas acções benéficas a nível fisiológico, que toda a gente deve procurar optimizá-lo. No entanto, indivíduos portadores de alelos ε4 do gene da apoliproteína E devem estar particularmente sensibilizados para esta relação. O gene da apolipoproteína E (ApoE) é responsável pela codificação desta proteína, que é o principal transportador de colesterol no cérebro. Existem 3 alelos diferente para o gene ApoE – ε2, ε3 e ε4 – que se podem organizar em 6 diferentes genótipos (cada indivíduo tem um alelo proveniente do pai e outro da mãe) – 2/2, 2/3, 2/4, 3/3, 3/4 e 4/4. Apesar de não se entender completamente o mecanismo subjacente, o risco de contrair a doença de Alzheimer está aumentado nos portadores de alelos ε4:
- genótipo ApoE 2/4 e 3/4 – risco 2-3 vezes superior ao de indivíduos com genótipo 3/3;
- genótipo ApoE 4/4 – risco cerca de 12 vezes superior ao de indivíduos com genótipo 3/3;
Importa referir, no entanto, que a presença do alelo ε4 num indivíduo não é determinista para o desenvolvimento da doença de Alzheimer. Ou seja, pode-se ter 1 ou, até mesmo, 2 alelos ε4 e nunca desenvolver esta doença.
Numa era em que o nosso cérebro está sujeito a uma vasta gama de estímulos sem precedentes na história da Humanidade, a privação do sono é cada vez mais comum. A duração ideal de sono varia com a idade, mas nunca deve ser inferior a 7 horas por noite. É importante difundir esta mensagem para que possamos diminuir o risco de desenvolver a doença de Alzheimer, e outras.
Referências:
Ju, Yo-El S et al. Slow wave sleep disruption increases cerebrospinal fluid amyloid-β levels. Brain : a journal of neurology vol. 140,8 (2017): 2104-2111.
Ahmadian, Nahid et al. Tau Pathology of Alzheimer Disease: Possible Role of Sleep Deprivation. Basic and clinical neuroscience vol. 9,5 (2018): 307-316.
Shokri-Kojori, Ehsan et al. β-Amyloid accumulation in the human brain after one night of sleep deprivation. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America vol. 115,17 (2018): 4483-4488.
Wolfe, Cody M et al. The Role of APOE and TREM2 in Alzheimer’s Disease-Current Understanding and Perspectives. International journal of molecular sciences vol. 20,1 81. 26 Dec. 2018