27 . 11 . 2020
Sobrecarga de Ferro - O Perigo da Acumulação
O ferro é um mineral essencial para o correcto funcionamento do corpo humano. A deficiência de ferro é o desequilíbrio mais comum, especialmente em mulheres de idade fértil. Contudo, quando em excesso, o ferro também pode causar problemas.
A hemoglobina é a proteína que permite o transporte de oxigénio nos glóbulos vermelhos, acabando por fornecer energia a todas as células do corpo. O ferro é parte integrante da hemoglobina, desempenhando assim uma função absolutamente vital. Além disso, outras proteínas e enzimas no organismo também têm ferro na sua constituição.
Fig. 1 – Estrutura da hemoglobina com 4 cadeias de péptidos. Cada cadeia tem um grupo heme no seu centro, que por sua vez contém ferro.
Quanto ferro existe no corpo?
Em situações normais, existem 3 a 4 gramas de ferro distribuídos da seguinte forma (1):
- Hemoglobina – cerca de 2,5 gramas;
- Outras proteínas e enzimas (mioglobina, citocromos, catalase) – 400 mg;
- Ferro ligado à transferrina (proteína de transporte no plasma) – 3-7 mg;
- Reservas de ferro sob a forma de ferritina – cerca de 1 grama.
Como é regulado o conteúdo de ferro?
Deve existir um equilíbrio entre a absorção e a excreção de ferro, de forma a que a concentração se mantenha estável. Geralmente, são absorvidos 1-2 mg por dia, através do intestino, e as perdas diárias são semelhantes. Contudo, nas mulheres em idade fértil, os ciclos menstruais contribuem para perdas adicionais de ferro, sendo frequente haver necessidade de suplementação.
Como pode então o ferro acumular-se em níveis perigosos?
Certas pessoas têm maior facilidade em absorver o ferro proveniente da dieta. Este facto deve-se a mutações no gene HFE, que controla a absorção intestinal de ferro. Se houver mutação em mais de um alelo, a pessoa poderá desenvolver hemocromatose hereditária, doença em que há acumulação de níveis tóxicos de ferro. Estas mutações são relativamente comuns, estando presentes em 4-5% da população europeia. Os portadores de apenas uma mutação também podem desenvolver sobrecarga de ferro, pelo que é importante haver alguma monitorização destes parâmetros.
Existem outras causas para a sobrecarga de ferro, como sucessivas transfusões de sangue em pacientes com anemia crónica, mas esses são casos mais específicos.
Porque é o ferro tóxico, quando em excesso?
Quando a quantidade de ferro em circulação excede a capacidade de transporte, ele começa-se a depositar nos tecidos, especialmente no fígado, coração e glândulas endócrinas (como os testículos e o pâncreas, por exemplo). Como outros metais, o ferro participa em reacções químicas que levam à produção de espécies reactivas de oxigénio (também conhecidas por radicais livres). Estes compostos são poderosos agentes oxidantes, que podem danificar as estruturas celulares, como os lípidos de membrana e até mesmo o DNA, se não houver suficiente resposta antioxidante.
Que consequências pode ter a sobrecarga de ferro?
Na sua forma mais grave, a sobrecarga de ferro pode conduzir a:
- alterações hepáticas com eventual progressão para fibrose e cirrose;
- deposição cardíaca com alteração da condução eléctrica e cardiomiopatia;
- diabetes por destruição das células β do pâncreas;
- hipogonadismo por deposição nas gónadas (testículos e ovários);
- dores articulares e artrite.
Mesmo em formas menos graves, a sobrecarga de ferro pode ter um impacto significativo. Um estudo longitudinal que acompanhou cerca de 6000 pacientes no Reino Unido durante um período de 7 anos, estratificou a amostra de acordo com os níveis de ferritina. Os autores concluíram que nos homens com reservas de ferro acima do normal, a taxa de mortalidade por todas as causas foi superior. (2) Nas mulheres não se registou a mesma associação.
Fig. 2 – O fígado é o órgão mais atingido pela sobrecarga de ferro.
Do ponto de vista metabólico, que impacto tem o ferro?
Uma meta-análise de 2018 demonstrou que reservas excessivas de ferro estão relacionadas com a presença de factores de risco cardiovascular, que constituem a síndrome metabólica (3). Relembremos que a síndrome metabólica consiste na presença de 3 dos seguintes factores:
- aumento da circunferência abdominal – marcador de gordura visceral;
- triglicéridos elevados;
- colesterol HDL reduzido (o chamado “bom” colesterol);
- pressão arterial elevada;
- aumento da glicémia – marcador de resistência à insulina.
Também os níveis de ácido úrico são afectados por concentrações excessivas de ferro no organismo, conduzindo até a aumento das crises de gota (4).
Como se faz o diagnóstico de sobrecarga de ferro?
Os parâmetros laboratoriais utilizados para detectar a sobrecarga de ferro são os seguintes:
- Ferritina – anormal quando acima de 300 ng/mL no homem ou 200 ng/mL na mulher;
- Saturação de transferrina – normal quando abaixo de 45%.
Caso estes marcadores sugiram sobrecarga de ferro, deve ser pedido o estudo genético da hemocromatose hereditária. Para quantificar a deposição de ferro nos órgãos, pode-se recorrer a exames de imagem como a ressonância magnética.
Qual o tratamento para a sobrecarga de ferro?
Geralmente, o tratamento consiste na remoção de ferro do organismo através de flebotomias. Recordemos que a maioria do ferro se encontra em circulação, na hemoglobina. Com uma flebotomia de 500 mL de sangue, são retirados cerca de 200 mg de ferro, pelo que a frequência do procedimento deve variar de acordo com a gravidade da sobrecarga.
Flebotomias periódicas, com diminuição dos níveis de ferritina, contribuem para a normalização da pressão arterial e parâmetros de sensibilidade à insulina, nos doentes afectados. (5) Os pacientes com tendência para este problema devem, ainda, ter alguns cuidados alimentares, evitando o consumo excessivo das principais fontes de ferro na dieta, nomeadamente a carne vermelha e os bivalves.
O metabolismo do ferro é mais um exemplo de que tudo no corpo é minuciosamente controlado e deve respeitar um certo equilíbrio. Quando em excesso, o ferro tem um impacto negativo na fisiologia de diversos sistemas de órgãos. Este é um problema relativamente comum e de fácil diagnóstico, pelo que deve fazer parte da avaliação clínica de rotina.
Referências:
1. Bacon, B & Kwiatkowski, J. (2020). Approach to the patient with suspected iron overload. In J. S. Tirnauer (Ed.), UpToDate. Retrieved November 21, 2021 from https://www.uptodate.com/contents/approach-to-the-patient-with-suspected-iron-overload
2. Kadoglou NPE, Biddulph JP, Rafnsson SB, Trivella M, Nihoyannopoulos P, Demakakos P. The association of ferritin with cardiovascular and all-cause mortality in community-dwellers: The English longitudinal study of ageing. PLoS One. 2017;12(6):e0178994. Published 2017 Jun 7
3. Suárez-Ortegón MF, Ensaldo-Carrasco E, Shi T, McLachlan S, Fernández-Real JM, Wild SH. Ferritin, metabolic syndrome and its components: A systematic review and meta-analysis. Atherosclerosis. 2018 Aug;275:97-106.
4. Fatima T, McKinney C, Major TJ, Stamp LK, Dalbeth N, Iverson C, Merriman TR, Miner JN. The relationship between ferritin and urate levels and risk of gout. Arthritis Res Ther. 2018 Aug 15;20(1):179.
5. Houschyar KS, Lüdtke R, Dobos GJ, Kalus U, Broecker-Preuss M, Rampp T, Brinkhaus B, Michalsen A. Effects of phlebotomy-induced reduction of body iron stores on metabolic syndrome: results from a randomized clinical trial. BMC Med. 2012 May 30;10:54.
Artigo muito bom ???
Muito obrigado pelo seu comentário.