MENU

Blog.

26 . 03 . 2021

O Eixo Cérebro-Intestino: uma via de dois sentidos

É cada vez mais aceite, e sustentada do ponto de vista científico, a comunicação bidireccional entre o sistema nervoso central e o intestino. Neste artigo, exploraremos os mecanismos por trás desta relação.

À medida que vamos aprendendo mais sobre a nossa própria biologia, e a forma como os diferentes ecossistemas funcionam em simbiose no corpo humano, é possível estabelecer novas conexões e explorar potenciais avenidas terapêuticas. Um dos campos que tem merecido especial atenção é a microbiota intestinal, o grande reservatório de microorganismos no ser humano.

Como pode a microbiota influenciar o cérebro?

Pode-se dizer que o que se passa no intestino, não fica no intestino. Os microorganismos que habitam o intestino e participam de forma activa no processo de digestão, ajudando-nos a produzir e absorver determinados nutrientes e outras substâncias. Entre as suas funções principais, contam-se as seguintes:

  • produção de nutrientes e vitaminas – por exemplo as vitaminas do complexo B – que têm um efeito directo na produção de energia e função neuronal (1)
  • produção de neurotransmissores, que podem ter actividade local ou à distância. Por exemplo o neurotransmissor GABA é produzido por várias bactérias da flora comensal, e tem um efeito directo nos estados de ansiedade (2). Os níveis de serotonina, também são modulados pela flora intestinal.
  • preservação da função de barreira epitelial do intestino. A mucosa intestinal deve funcionar como uma barreira com permeabilidade selectiva, mantendo fora da circulação substâncias com potencial tóxico para o organismo. Uma flora intestinal saudável e equilibrada ajuda a manter a função de barreira. Níveis elevados de lipopolissacarídeos (LPS) têm sido associados com um elevado risco de depressão, por exemplo (3). Os lipopolissacarídeos, também designados por endotoxinas, são fragmentos da membrana de certas bactérias, que têm um efeito inflamatório, e podem ser absorvidas se houver um aumento da permeabilidade intestinal.
  • síntese de ácidos gordos de cadeia curta – produtos do metabolismo de certas bactérias da flora comensal, que têm um efeito anti-inflamatório a nível local e sistémico. Recentemente, foi descrita a relação inversa entre os níveis de butirato (um dos ácidos gordos de cadeia curta) e a presença de placas de amilóide no cérebro, que é característica da doença de Alzheimer (4).

E o cérebro influencia o intestino?

Provavelmente, todos nós já sentimos o impacto do nosso estado emocional na digestão, de diferentes formas. Existe uma rede neuronal que coordena directamente a motilidade e função secretora do intestino – o sistema nervoso entérico. Por sua vez, este sistema recebe inputs do sistema nervoso autónomo (simpático e parassimpático) e do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA), que controla a resposta neuro-hormonal ao stress. Basicamente, existe uma densa matriz neuronal que estabelece a ligação entre o que é processado a nível do cérebro e o que acontece no intestino.

Esta modulação, incide nos seguintes processos:

  • alterações da motilidade intestinal, devido a desequilíbrios entre os dois ramos do sistema nervoso autónomo (simpático e parassimpático).
  • secreção de enzimas digestivas e muco. O muco produzido pelas células que revestem o intestino, tem um efeito protector e também ajuda a estabelecer uma comunidade de bactérias simbióticas. Esta secreção é directamente afectada pelo sistema nervoso autónomo (5).
  • aumento da permeabilidade intestinal induzida por estados de stress, através da estimulação do eixo HHA, com produção da hormona libertadora de corticotropina (5). Como vimos anteriormente, este aumento de permeabilidade intestinal pode levar conduzir à absorção de endotoxinas, com repercussões sistémicas.
  • promoção de hipersensibilidade visceral. Certos estados emocionais e stress crónico podem conduzir à diminuição do limiar de dor a nível intestinal. Este é um mecanismo importante nas doenças funcionais do tracto gastrointestinal, como a frequente Síndrome do Intestino Irritável (6).

Todos estes mecanismos não são estanques e influenciam a microbiota, gerando um ciclo bidireccional. Por exemplo, em casos de hiperactivação do eixo HPA e do ramo simpático do SNA (sistema nervoso autónomo), existe secreção de noradrenalina e outros neurotransmissores a nível intestinal, que por sua vez promove o crescimento de certas bactérias em detrimento de outras.

Fig. 1 – Esquema representativo das diferentes vias de conexão entre o cérebro e o intestino (6). SNA – Sistema Nervoso Autónomo; SNE – Sistema Nervoso Entérico; Eixo HHA – eixo Hipotálamo-Hipófise-Adrenal.

 

Que implicação tem esta relação do ponto de vista terapêutico?

Tendo em conta esta relação complexa e bidireccional, existem três principais categorias de intervenções:

1. Terapêutica dirigida ao sistema nervoso central

Nesta classe incluem-se métodos que visem atenuar eventuais desequilíbrios que estejam a contribuir para uma desregulação a nível intestinal, podendo ser farmacológicos ou não. Uma modalidade com particular interesse é a hipnoterapia dirigida ao intestino. Nesta intervenção, o paciente é sugestionado a processar os estímulos sensoriais de uma forma distinta, com o intuito de modular a resposta neurológica a nível intestinal. Num estudo de 2016, esta abordagem provou ter uma eficácia semelhante à dieta baixa em FODMAPs, no controlo dos sintomas da Síndrome do Intestino Irritável (7). A hipnoterapia não parece afectar de forma significativa a microbiota intestinal, o que sugere uma acção diferente (8).

2. Terapêutica dirigida ao intestino

Aqui incluem-se substâncias geralmente utilizadas no tratamento de doenças funcionais do tracto gastrointestinal, que actuam principalmente a nível da motilidade intestinal e da actividade secretora. Existem alternativas farmacológicas e naturais, como por exemplo o extracto de hortelã-pimenta, que tem uma actividade anti-espasmódica e é mencionado nas últimas guidelines do Colégio Americano de Gastroenterologia, para tratamento da Síndrome do Intestino Irritável (9).

3. Terapêutica dirigida à microbiota

Através da modulação da microbiota é possível atingir bons resultados clínicos, nas doenças funcionais do tracto gastrointestinal. Existem várias formas de “ajustar” a microbiota. Do mais simples para o mais complexo, temos:

  • dieta – o consumo de fibra e polifenóis diversos ajuda a promover uma microbiota saudável.
  • uso de prebióticos – substâncias que alimentam e promovem o crescimento de certas estirpes bacterianas.
  • probióticos – administração de microorganismos que têm um impacto específico na flora. Recentemente, até foi introduzido o termo “psicobiótico”, que se refere a probióticos específicos com capacidade de alterar a produção de neurotransmissores no intestino (10).
  • antibióticos – pode ser necessária intervenção directa a nível da flora com substâncias com actividade antibiótica. Por exemplo, o uso de rifaximina no tratamento da proliferação excessiva de bactérias no intestino delgado (SIBO).

Neste sucinto artigo, podemos perceber a complexidade da inter-relação entre o cérebro e o intestino e a forma como eles se afectam mutuamente. Estas associações tornam o entendimento mais difícil e menos linear, mas, ao mesmo tempo, abrem novas avenidas para intervenções clínicas complementares.

 

Referências:

1. Yoshii K, Hosomi K, Sawane K, Kunisawa J. Metabolism of Dietary and Microbial Vitamin B Family in the Regulation of Host Immunity. Front Nutr. 2019 Apr 17;6:48.

2. Strandwitz P. Neurotransmitter modulation by the gut microbiota. Brain Res. 2018;1693(Pt B):128-133.

3. Liang S, Wu X, Jin F. Gut-Brain Psychology: Rethinking Psychology From the Microbiota-Gut-Brain Axis. Front Integr Neurosci.

4. Marizzoni M, Cattaneo A, Mirabelli P, Festari C, Lopizzo N, Nicolosi V, Mombelli E, Mazzelli M, Luongo D, Naviglio D, Coppola L, Salvatore M, Frisoni GB. Short-Chain Fatty Acids and Lipopolysaccharide as Mediators Between Gut Dysbiosis and Amyloid Pathology in Alzheimer’s Disease. J Alzheimers Dis. 2020;78(2):683-697.

5. Tache Y, Larauche M, Yuan PQ, Million M. Brain and Gut CRF Signaling: Biological Actions and Role in the Gastrointestinal Tract. Curr Mol Pharmacol. 2018;11(1):51-71.

6. Mayer EA, Tillisch K. The brain-gut axis in abdominal pain syndromes. Annu Rev Med. 2011;62:381-96.

7. Peters SL, Yao CK, Philpott H, Yelland GW, Muir JG, Gibson PR. Randomised clinical trial: the efficacy of gut-directed hypnotherapy is similar to that of the low FODMAP diet for the treatment of irritable bowel syndrome. Aliment Pharmacol Ther. 2016 Sep;44(5):447-59.

8. Peter J, Fournier C, Keip B, Rittershaus N, Stephanou-Rieser N, Durdevic M, Dejaco C, Michalski M, Moser G. Intestinal Microbiome in Irritable Bowel Syndrome before and after Gut-Directed Hypnotherapy. Int J Mol Sci. 2018 Nov 16;19(11):3619.

9. Lacy BE, Pimentel M, Brenner DM, Chey WD, Keefer LA, Long MD, Moshiree B. ACG Clinical Guideline: Management of Irritable Bowel Syndrome. Am J Gastroenterol. 2021 Jan 1;116(1):17-44.

10. Dinan TG, Stanton C, Cryan JF. Psychobiotics: a novel class of psychotropic. Biol Psychiatry. 2013 Nov 15;74(10):720-6.

Categorias: Demência, Microbioma, Stress

06 Comments

Nos gastroentristas normais da velha guarda vão receitar medicação para remediar, não vão à origem do problema… Eu não tenho SII pelo que percebi mas tenho muitos dos sintomas provocados pela deficiente produção de neurotransmissores… Quem devo procurar? Acho que é o segundo tratamento: psicobiótico. .

Desculpem, acho que é o ponto 3 e não o 2.

Boa tarde Maria Tânia,
Não sei exactamente a que se refere quando refere sintomas provocados pela deficiente produção de neurotransmissores. Contudo, se quiser ter uma visão mais global da sua saúde, recomendo que consulte um médico que pratique medicina funcional.

Dr. Daniel Leal bom dia. É muito comovente vir agora um médico português,com uma explicação longa e cansativa para explicar aos portugueses que existe uma forte ligação entre intestino e cérebro e os problemas de saúde começam aqui nestes dois itens. O dr Fernando Lemos, além de invadir as redes sociais com este esclarecimento de excelência nos prepara como comer e o que tomar dentro dos probioticos, tudo para não acordar doenças autoimunes . Os médicos portugueses são muito poucos os que dão a cara pela saúde dos portugueses no geral e como caíram na actual conjuntura em total descrédito os portugueses viram que como os médicos,os jornalistas e a justiça em Portugal, pousaram em cima da mesa o vosso juramento, ética código de conduta e o profissionalismo, nada mais acrescentar. Escolheram as ideilogias políticas dum governo oligarquico e corrupto. A escolha foi consciente e a de muitos portugueses também. Os meus pais ensinaram-me , pior que as escolhas que fazemos é “TENTAR AGRADAR A DOIS SENHORES AO MESMO TEMPO”. Aqui o dinheiro tem mais valor que a vida humana. E é casa para dizer só se vive uma vez com direito a nascer mas, com prazo de validade dependendo da vontade do homem. Certo? Não quero contraditório. Obg. SE É OBRIGATÓRIO A MINHA IDENTIFICAÇÃO, ENTÃO É PORQUE NÃO HÁ LIBERDADE DE EXPRESSÃO. TEMPO DA CAÇA ESTÁ ABERTO TODO O ANO.

Dr. Daniel,
Olá!
Tenho SIBO, e tenho cuidado apenas com mudança alimentar(com pouca melhora). Há também uma suspeita de que eu tenha também SII. O senhor referiu-se ao antibiótico rifaximina para o tratamento de SIBO, pergunto se o antibiótico não irá prejudicar de certo forma o organismo? Há um ano, tomei, por mais de 45 dias, antibióticos devido a uma cirurgia, penso que talvez tenha me prejudicado muito. É possível tratar SIBO apenas com mudança alimentar?

Olá Mariana,
A rifaximina é um antibiótico, de facto, mas tem um efeito diferente da maioria dos outros. Não tende a causar problemas na flora intestinal (quando tomado por curtos espaços de tempo) e é eficaz no tratamento do SIBO. Quanto à outra questão, depende da gravidade do SIBO. A dieta por si só, costuma ser insuficiente e é necessária uma abordagem complementar, com antibióticos, probióticos, prebióticos e, eventualmente, procinéticos.
As melhoras.

DEIXE UMA RESPOSTA