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21 . 07 . 2018

A Neurobiologia do Apetite - Parte I

O excesso de peso e a obesidade são problemas cada vez mais frequentes na nossa sociedade. Mas, se a solução é tão simples como criar um défice calórico comendo menos e/ou fazendo mais exercício, então porque é que muito de nós continuamos incapazes de atingir o peso ideal?

Parece que, tal como em muitas destas questões relacionadas com a saúde, a resposta não é assim tão linear e há muitas variáveis a ter em conta.

É lógico que ninguém quer comer em demasia, quando o objectivo é a manutenção de um peso saudável. Porque não chegam, então, as nossas convicções e força de vontade para prevenir que isso aconteça?

Na realidade, o controlo da adiposidade (gordura) corporal depende muito mais de mecanismos instintivos e inconscientes do nosso cérebro, do que propriamente da nossa força de vontade ou qualquer outro atributo racional e lógico. A espécie humana evoluiu, durante a grande maioria da sua história, em ambientes de recursos limitados, em que o alimento não abundava e era essencial uma procura e acumulação eficiente de calorias, sob pena de a reprodução e sobrevivência não serem possíveis. Foi esta pressão evolutiva que tornou o nosso cérebro, especificamente a sua parte mais primitiva e instintiva, um verdadeiro “GPS” em busca de calorias, sendo capaz de dirigir a nossa fisiologia e comportamento de forma muito poderosa.

 

O controlo da adiposidade corporal depende muito mais de mecanismos instintivos e inconscientes do nosso cérebro, do que propriamente da nossa força de vontade ou qualquer outro atributo racional e lógico.”

 

O problema surge quando o ser humano começa a estar rodeado de alimentos de elevada densidade calórica, e muitas vezes pobre em conteúdo nutricional, como acontece no mundo moderno. Para a parte instintiva do nosso cérebro, a ingestão destes alimentos é uma escolha óbvia, pois ajuda a garantir a nossa necessidade básica de sobrevivência. Infelizmente, para as pessoas com excesso de peso, estes mecanismos inconscientes não evoluíram para prevenir a acumulação de gordura, ou pelo menos não na mesma magnitude.

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Alimentos altamente processados são uma novidade, do ponto de vista evolutivo, para a espécie humana.

 

Vamos, então, especificar quais os principais mecanismos de controlo da adiposidade, até agora identificados, de que o nosso cérebro dispõe:

  • sistema de recompensa – localizado nos gânglios da base, este é o principal circuito responsável pelos comportamentos aditivos. Ao serem satisfeitos certos impulsos, há uma libertação de dopamina que gera uma sensação de prazer, que o nosso cérebro aprende a procurar e repetir. Através de múltiplos receptores sensoriais, este sistema avalia as opções à disposição e, instintivamente, promove a ingestão de alimentos com certas características que lhes conferem uma maior recompensa. Gorduras, açúcares e alimentos salgados têm uma elevada recompensa neuronal, e por isso são combinados na indústria alimentar para nos fazer comer em demasia.
  • sistema de tomada de decisão – centralizado no cortex orbitofrontal e no núcleo ventromedial do tálamo, este sistema tem a função de avaliar os prós e contras de possíveis acções e permitir a sua concretização. Apesar de também ter em conta aspectos conscientes e racionais, a densidade calórica de um alimento torna-o bastante atractivo e o input insconsciente tende a ser mais forte.
  • o lipóstato – este sistema, localizado no hipotálamo, funciona como um regulador da adiposidade, através da sua influência no apetite, comportamento e taxa metabólica basal. A leptina (hormona produzida pelas células do tecido adiposo) é o principal sensor utilizado pelo lipóstato, sendo que quando esta diminui, o cérebro interpreta esse sinal como uma diminuição das reservas energéticas, promovendo o aumento da ingestão calórica e diminuição da actividade física. Outros factores, como a recompensa neuronal de certo alimento, o conteúdo proteico, actividade física e qualidade do sono, também são importantes na regulação do lipóstato. Este é o sistema que, geralmente, sabota as dietas restritas em calorias, pois é activado para repor a mesma quantidade de gordura corporal prévia à dieta.

 

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Os neurónios que constituem o lipóstato localizam-se no hipotálamo, que é a sede de muitos outros centros de controlo homeostático.

 

  • sistema da saciedade – regula a quantidade de comida ingerida a cada refeição, ao induzir a sensação de saciedade. Localiza-se no tronco cerebral e recebe informação de receptores ao longo do tracto digestivo. Os alimentos com menor densidade calórica (maior volume para um mesmo número de calorias), maior conteúdo de fibra e proteína são mais saciantes. Contudo, o sistema de recompensa pode sobrepor-se ao mecanismo de saciedade, se o alimento for altamente apelativo (daí haver sempre “espaço” para uma sobremesa deliciosa).
  • ritmo circadiano e sono – circuito complexo localizado no hipotálamo, tronco cerebral e outras regiões do cérebro, que influencia os sistemas de recompensa, tomada de decisão e o lipóstato. Quando os nossos horários de sono e refeições estão desfasados do ciclo do dia e noite, e do nosso relógio biológico interno, o comportamento alimentar é afectado, passando a dar-se primazia a alimentos de elevada densidade calórica e recompensa neuronal (más escolhas para quem quer perder peso).
  • sistema de resposta ao stress – coordenado pela amígdala, este sistema permite-nos lidar com situações ameaçadoras, ao activar o sistema nervoso simpático e o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, este último levando à produção de cortisol.  Na sociedade actual, esta resposta é, frequentemente, desencadeada pelo stress crónico a que muitos estamos sujeitos. Para algumas pessoas com elevados níveis de stress, a ingestão de alimentos densos caloricamente, e com elevada recompensa neuronal, tem um efeito calmante e esta pode ser uma forma, inconsciente, de se “automedicarem”.

Todos estes circuitos neuronais não são estanques e afectam-se mutuamente, de forma a promover os comportamentos e respostas fisiológicas que o nosso cérebro instintivo concluiu serem os mais indicados. Eles são, altamente, variáveis entre indíviduos, sendo que alguns têm uma forte tendência para a acumulação de gordura, enquanto outros são “abençoados” com um lipóstato que promove o dispêndio de calorias em excesso.

Agora que identificámos os principais mecanismos de regulação da adiposidade corporal, na segunda parte deste artigo, vamos explorar os processos conscientes que se podem implementar para permitir uma perda de peso sustentada.

Referências:

Guyenet, SJ. The hungry brain : outsmarting the instincts that make us overeat. Flatiron Books, 2017.

Whiten, A. Forever Fat Loss: Escape the Low Calorie and Low Carb Diet Traps and Achieve Effortless and Permanent Fat Loss by Working with Your Biology Instead of Against It. Archangel Ink, 2014

Lutter, Michael, and Eric J. Nestler. Homeostatic and Hedonic Signals Interact in the Regulation of Food Intake. The Journal of Nutrition 139.3 (2009): 629–632.

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