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21 . 06 . 2019

Jejum modificado e as suas potenciais aplicações

São conhecidos os benefícios da restrição calórica na longevidade e o jejum é, actualmente, uma ferramenta poderosa, particularmente na reversão de problemas metabólicos. Recentemente, foi desenvolvida uma forma de jejum modificado que procura replicar os efeitos do jejum no organismo.

Nos anos 90, surgiram os primeiros estudos animais que demonstraram que uma dieta hipocalórica estaria associada a um aumento da longevidade. Efectivamente, ratos de laboratório sujeitos a restrição calórica constante, viveram 65% mais do que o grupo de controlo que tinha acesso livre a comida. Contudo, a prática de restrição calórica constante é difícil de adoptar e poderá conduzir a outros problemas e carências nutricionais. Neste âmbito, e muito graças ao trabalho do cientista italiano Valter Longo, foram estudadas formas alternativas de lograr os efeitos metabólicos do jejum e restrição calórica.

O que é a “fasting mimicking diet” (FMD)?

Conforme originalmente desenvolvida, esta dieta consiste num regime baixo em calorias (cerca de metade do número de calorias recomendadas para o peso do indivíduo), que deve ser seguido durante cinco dias.

No que toca à composição em nutrientes, as regras são as seguintes:

  • O aporte proteico deve ser reduzido, representando cerca de 10% das calorias totais ingeridas.
  • A gordura e os hidratos de carbono devem representar, cada, 40-50% do aporte calórico.
  • A dieta deve ser rica em micronutrientes – vitaminas e minerais.

Para maior eficácia, são recomendados 3-4 ciclos de FMD consecutivos, com 25 dias de descanso entre cada um.  Ou seja, cinco dias por mês de uma dieta hipocalórica e pobre em proteína durante três meses.

Que efeitos metabólicos tem a FMD?

A resposta sistémica ao jejum depende de vários protagonistas, como a glicose, a insulina, o glucagon, a hormona do crescimento, o IGF-1 (insulin growth factor-1), os glucocorticóides e a epinefrina. Numa fase inicial (6-24 horas), os níveis de insulina diminuem e as reservas hepáticas de glicogénio (um polímero de glicose) são utilizadas na produção de glicose, através de um processo designado por gliconeogénse. Passados 2-3 dias, entra-se numa fase de cetogénese, em que o fígado produz corpos cetónicos a partir de triglicéridos (provenientes do tecido adiposo) e aminoácidos (provenientes do músculo). Durante o jejum, o cérebro utiliza glicose ou corpos cetónicos como substrato energético, enquanto a maioria dos outros tecidos utiliza ácidos gordos livres, provenientes das reservas de tecido adiposo.

Um estudo publicado em 2017, reportou os efeitos da aplicação de três ciclos consecutivos de FMD em 71 indivíduos. Neste grupo, houve diminuição estatisticamente significativa dos seguintes parâmetros:

  • Peso, IMC (índice de massa corporal), massa gorda e perímetro abdominal
  • Pressão arterial sistólica
  • Níveis de IGF-1

De referir que as alterações foram mais significativas para os indivíduos com maior risco à partida. Ou seja, os indivíduos com maior IMC, tenderam a perder maior quantidade de peso e massa gorda.

Qual é a resposta da célula à FMD?

Tal como a restrição calórica, os principais alvos da FMD são os factores de crescimento IGF-1 e a via de sinalização intracelular mTOR (mammalian target of rapamycin). De uma forma bastante simplificada, estipula-se que, em estados de carência energética e privação proteica, o organismo “desliga” estas vias de crescimento celular, dando primazia a processos de limpeza e regeneração, como a autofagia, através dos quais certos erros metabólicos podem ser corrigidos.

O que a FMD oferece, em comparação com a restrição calórica constante, são os períodos subsequentes de re-alimentação, em que o organismo se regenera e produz novos compostos celulares

 

Fig. 1 – Esquema representativo da acção da via de sinalização mTOR na produção de proteínas e crescimento celular.

 

Qual a potencial utilidade da FMD no tratamento do cancro?

As células cancerígenas têm um elevado consumo energético, e usam, predominantemente, a glicose como substrato. Do ponto de vista metabólico, as células cancerígenas são pouco flexíveis, fruto do seu desenvolvimento “anormal”. Assim, a diminuição de glicose disponível em circulação força a célula cancerígena a utilizar meios alternativos de produção de energia, como a fosforilação oxidativa mitocondrial, o que diminui a sua taxa de replicação. Através deste processo, são geradas espécies reactivas de oxigénio (os chamados radicais livres), que podem danificar as células cancerígenas.

Paralelamente, descobriu-se que o jejum induz nas células saudáveis um “modo de sobrevivência”, com diminuição de vários processos proliferativos. Assim, estas células passam a ser resistentes a agentes tóxicos do exterior, como a quimioterapia e radioterapia. As células cancerígenas não exibem este comportamento e o jejum não as protege de agentes tóxicos. Esta teoria designa-se por “resistência diferencial ao stress” e constitui a base científica para uma utilização complementar de formas de restrição calórica, como a FMD, e a terapêutica oncológica convencional.

O papel da FMD na autoimunidade

Estudos animais com modelos de esclerose múltipla abrem uma interessante perspectiva para o uso de formas de restrição calórica no tratamento de doenças autoimunes. Num estudo concreto em ratos, verificou-se uma redução de sintomas em todos os animais e completa regressão da doença em 20%. Os autores propõem que os ciclos de jejum conduzem a uma diminuição das populações de linfócitos T e monócitos responsáveis pela resposta autoimune. Por sua vez, a fase de re-alimentação estimularia a produção de novas células do sistema imunitário, não dirigidas para o auto-antigénio. O mecanismo proposto é, então, uma espécie de reset do sistema imunitário.

No modelo específico da esclerose múltipla, a fase de re-alimentação também poderia estimular a produção de mais mielina pelos oligodendrócitos, regenerando assim os neurónios lesados.

Contudo, a evidência da utilidade dos ciclos de jejum na doença autoimune, em humanos, ainda é reduzida e serão necessários novos estudos para comprovar esta interessante teoria.

A FMD é então uma forma simplificada e pragmática de introduzir a restrição calórica como ferramenta clínica. Actualmente, a sua utilidade é inquestionável na reversão de problemas metabólicos, mas, num futuro próximo, pode vir a fazer parte do tratamento do cancro ou da patologia autoimune. É fascinante como a Natureza pode ter “previsto” um mecanismo de regeneração e recuperação de função, cuja complexidade só agora começa a ser desvendada.

Referências:

Wei M, Brandhorst S, Shelehchi M, et al. (2017). Fasting-mimicking diet and markers / risk factors for aging , diabetes , cancer , and cardiovascular disease. Science Translational Medicine, Feb 15;9(377).

Longo V. D. (2019). Programmed longevity, youthspan, and juventology. Aging cell, 18(1).

Nencioni A, Caffa I, Cortellino S, Longo VD. (2018). Fasting and cancer: molecular mechanisms and clinical application. Natural Reviews Cancer, Nov;18(11):707-719.

Choi, I. Y., Piccio, L., Longo, V. D. (2016). A Diet Mimicking Fasting Promotes Regeneration and Reduces Autoimmunity and Multiple Sclerosis Symptoms. Cell reports, 15(10), 2136–2146.

Categorias: Cancro, Metabolismo

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