MENU

Blog.

23 . 11 . 2018

Transplante de Microbiota Fecal - Potenciais Usos Terapêuticos

Nos últimos anos, a comunidade científica tem-se rendido ao papel determinante que o microbioma intestinal assume em diversos processos metabólicos e imunológicos. Por microbioma, entende-se o ecossistema de microorganismos presente no corpo humano, incluindo bactérias, vírus e fungos. Cada ser humano tem o seu próprio ecossistema, único e característico.

Existem diversas formas de alterar esta população de microorganismos, como: dietas de eliminação, probióticos, prebióticos, antibióticos e o transplante de microbiota fecal. Esta última é a abordagem mais radical, uma vez que consiste na inoculação directa de microbiota fecal de um dador, no intestino do receptor. Curiosamente, há registos históricos de um procedimento semelhante ser utilizado na China no século IV, em doentes com diarreia grave, apesar de a técnica utilizada ser muito rudimentar.

Qual é a principal indicação para o transplante fecal?

Actualmente, a grande indicação do transplante fecal é a colite pseudomembranosa recorrente, uma infecção intestinal grave provocada pela bactéria Clostridium difficile. Nos Estados Unidos, o transplante fecal foi aprovado para esta indicação em 2013 e tem uma percentagem de cura na ordem dos 90%, muito superior aos  20-30% com terapia antibiótica.

 

colite-fig1

Fig. 1 A colite pseudomembranosa é uma infecção grave causada por Clostridium difficile, que pode levar à perfuração do intestino.

 

Que outros usos poderá esta técnica ter?

Sendo esta uma forma de alterar directamente a flora intestinal de um indivíduo, os principais  estudos têm-se cingido ao foro gastrointestinal, destacando-se as seguintes patologias:

Doenças funcionais do tracto gastrointestinal – entidades em que não existem alterações anatómicas estruturais, mas os pacientes têm sintomas. São exemplos, a síndrome do cólon irritável e a obstipação crónica.

Doença inflamatória intestinal – patologia mais grave, decorrente de uma resposta imunológica anormal a antigénios expressos pela flora intestinal. A doença de Crohn e a colite ulcerosa são os dois tipos de doença inflamatória intestinal.

Contudo, conhecidas que são as potenciais implicações sistémicas da modulação do microbioma intestinal, outras interessantes áreas de investigação estão a ser exploradas, como a síndrome metabólica e diabetes mellitus tipo 2, obesidade, doenças autoimunes, neurodegenerativas, entre outras.

O que nos dizem os estudos actualmente disponíveis acerca da sua eficácia?

Contrastando com a grande eficácia no tratamento de colite recorrente a Clostridium difficile, as percentagens de remissão na doença inflamatória intestinal, nos estudos até agora publicados, são mais modestas. Uma meta-análise de 2014 documentou uma taxa de remissão de 36.2% (maior taxa de remissão na doença de Crohn do que na colite ulcerosa). Outro estudo randomizado controlado de 2015, em 50 doentes com colite ulcerosa, não demonstrou qualquer diferença na taxa de remissões clínicas ou endoscópicas pós-transplante.

Na síndrome do cólon irritável, os resultados também têm sido díspares, sem uma clara eficácia a nível terapêutico. Por sua vez, um estudo chinês em 276 pacientes com obstipação crónica, demonstrou melhoria em 67% e cura completa em 40% dos casos.

Como é o transplante fecal executado?

Antes de mais, o dador tem de ser cuidadosamente seleccionado. Diversos questionários sobre estilo de vida, hábitos alimentares, antepassados médicos e uso de antibióticos. Para despistar infecções potencialmente transmissíveis, são feitas análises ao sangue e fezes. O conteúdo fecal é depois processado e inoculado por via superior (sonda naso-gástrica ou cápsulas) ou via inferior (colonoscopia ou enema de retenção).

transplante-fecal_fig.2

Fig.2 – Esquema ilustrativo do processo de transplante fecal.

 

É um procedimento seguro?

Os efeitos secundários são geralmente gastrointestinais e transitórios (alterações do trânsito, dor abdominal, etc.). Contudo, quando o procedimento envolve técnicas endoscópicas, existe sempre o risco associado a estas técnicas. O uso recente desta técnica também não possibilita saber quais os efeitos secundários a longo prazo. É importante referir que, apesar de já existir um conhecimento sólido sobre a componente bacteriana do microbioma, os vírus são mais difíceis de identificar e caracterizar, o que coloca reservas quanto à total fiabilidade dos métodos de selecção de dador, correntemente utilizados.

O transplante de microbiota fecal tem um potencial terapêutico fascinante e vem pôr à prova todas as teorias que se têm elaborado à volta do microbioma. Contudo, os resultados dos ensaios clínicos não comprovam, até à data, tratar-se de um “milagre” terapêutico, com excepção da infecção recorrente a  Clostridium difficile. É possível que, à medida que o conhecimento sobre o microbioma expande, seja possível seleccionar dadores com uma composição de microorganismos ideal para determinadas patologias, o que tornaria o transplante dirigido e mais eficaz. Certamente, teremos muitas novidades neste campo da ciência num futuro próximo.

Referências:

Wang JW, Kuo CH, Kuo FC, et al. Fecal microbiota transplantation: Review and update. Journal of the Formosan Medical Association. 2018.

Sunkara T, Rawla P, Ofosu A, Gaduputi V. Fecal microbiota transplant – a new frontier in inflammatory bowel disease. Journal of Inflammation Research. 2018;11:321-328.

Schmulson M, Bashashati M. Fecal microbiota transfer for bowel disorders: efficacy or hype? Current Opinion in Pharmacology. 2018;43:72-80.

Colman RJ, Rubin DT. Fecal microbiota transplantation as therapy for inflammatory bowel disease: a systematic review and meta-analysis. Journal of Crohns and Colitis. 2014;8(12):1569–1581.

Rossen NG, Fuentes S, van der Spek MJ, et al. Findings from a randomized controlled trial of fecal transplantation for patients with ulcerative colitis. Gastroenterology. 2015;149(1):110.e4–118.e4.

Li N, Tian H, Ma C et al. Efficacy analysis of fecal microbiota transplantation in the treatment of 406 cases with gastrointestinal disorders. Chinese Journal of Gastrointestinal Surgery 2017, 20:40-46.

Categorias: Autoimunidade, Microbioma

DEIXE UMA RESPOSTA